NILZA
Cidades do interior possuem beleza, silêncio,
tristezas e solidão. Foi em uma dessas que cresci, vendo o tempo se arrastar
por minutos intermináveis e incontáveis dias. As ruas imutáveis, nas quais a
modernidade não alcança as casas taciturnas, bucólicas e recatadas onde se
escondem segredos em cada brasão imaginário de tradição interiorana. Os
comércios de fachadas simples que sugerem muito trabalho e pouco recurso, são
acessíveis a todos, da senhora do casarão na rua principal ao camponês de pés
descalços. Nas pequenas cidades também existem os bairros mal vistos nos quais
moram gente de baixa renda, de estirpe duvidosa e que reconhecem pertencer ao
“seu lugar”, não compartilham os clubes, as festas e muito menos os hábitos dos
moradores mais abastados que ocupam os bairros privilegiados. É uma “casa
grande e senzala” intrínseca na vida das pessoas que levanta uma barreira
assustadoramente real em um lugar tão pequeno em que todos se encontram nas
poucas esquinas. Antes de continuar meu relato de memória é importante
descrever o ponto de encontro de todos os viventes que habitam um lugar assim.
A praça, território neutro, onde ricos e pobres se encontram, se percebem ou se
ignoram sem entrar em conflito. Na praça os boêmios e moradores de rua encontram
aconchego, os cães sem donos podem descansar sem que sejam enxotados. Também é
na praça que as inocentes crianças brincam que os adolescentes namoram e que os
mais velhos vêm a vida passar modorrentamente.
Nilza, uma moça nem feia nem bonita é a principal
protagonista desta história. Quem ia passear na praça tanto durante a semana
quanto aos sábados e domingos, veria com certeza a moça caminhando em círculo,
como quem passeia. Olhar perdido procurando alguém dentro de seu delírio.
Levava nas mãos sacolas de viagem cheias de roupas como se estivesse prestes a
embarcar para algum lugar distante. Chegava na praça pontualmente às 18 horas,
caminhava até umas 20 horas e sentava-se em um banco qualquer, tirava de sua
eterna bagagem peça por peça de roupa e dobrava cuidadosamente arrumando de uma
sacola para outra como se alguém fosse chegar para lhe buscar. Lá pelas 22
horas, assim que o relógio da matriz badalava, Nilza se levantava e continuava
a caminhar, ignorava as outras pessoas, se alguém lhe falava ela não respondia,
baixava os olhos opacos e fundos e continuava a caminhar pela praça. Às 22h30
min o corpo magro e arqueado pelo peso da bagagem atravessava a rua e seguia em
direção ao bairro do Triângulo onde morava com a família. Todos os dias a moça
fazia o mesmo itinerário, no mesmo horário com pontualidade britânica. As
crianças corriam a sua volta gritando “Nilza louca! Nilza louca!” Os adultos
riam divertidos quando ela tentava proteger das investidas infantis sua
preciosa carga, nunca digeri tanta maldade, sentada no encosto de um banco a
adolescente que havia em mim observava e se identificava um pouco com aquela
solidão apática, nessas horas observadoras eu odiava profundamente tudo o que
meus conterrâneos representavam.
Indagando sobre a história comovente de Nilza,
descobri que ela sofrera uma brutal desilusão que a manteve encarcerada dentro
de sua dor. Moça evangélica, de pouca cultura, muito trabalhadeira que
certamente teria sido perfeita dona de casa e ótima mãe de família, fora
abandonada no altar pelo noivo que fugira com outra qualquer. Nunca se
recuperou, ia a praça todos os dias com sua bagagem talvez na esperança de que
seu amado ainda viria resgatá-la da insanidade na qual mergulhara. Os
familiares desistiram de tentar impedi-la de repetir a humilhação noturna, nas
vezes em que tentavam lhe tirar as sacolas ela surtava e precisava ser
internada no sanatório de Barbacena. O tempo passou e Nilza envelheceu, mas
sempre carregando seus farrapos de felicidade. Como eu disse no inicio, cidades
do interior permanecem intocáveis pelo tempo, as lembranças morrem com os mais
antigos, mas quem caminha na praça despercebido às vezes vislumbra a silhueta
triste de uma moça nem bonita nem feia que sentada em um banco dobra
cuidadosamente seu enxoval. Ao aproximar-se o caminhante despercebido se
convence de que foi uma ilusão de ótica provocada talvez pelas luzes faiscantes
do chafariz, porém um calafrio e uma tristeza profunda lhe acompanharão para
sempre.
Luz
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