DONA JÚLIA

A manhã ia alta, a luz do sol dourava os telhados das casinhas, os raios solares faziam desprender do mato um agradável aroma de ervas maceradas. Na vila de Santa Luzia do Carangola, enquanto as cigarras entoavam seu estridente mantra, as horas escorriam como fios d’água nas folhas de inhame. Lentamente a pequena vila acordava e os habitantes tomavam seus lugares no cenário matutino, os pequenos comércios abriam suas portas, leiteiros e verdureiros seguiam em suas carroças rumo às residências. Um jardim de chaminés soprava no céu baforadas de fumaça denunciando que nas cozinhas o almoço era preparado. Tudo era sonolência na pequena vila. Ao longe se ouvia alternadamente o canto enérgico de um galo. Santa Luzia do Carangola era cercada por propriedades rurais, nos arredores, homens, mulheres, famílias inteiras trabalhavam nos canaviais, nas lavouras de café, nos currais para garantir a parca sobrevivência. Entre os habitantes da vila vivia a família Ferreira, gente trabalhadora e que tirava de suas terras o sustento. O grande esteio dos Ferreira era dona Júlia, e a narrativa que segue é uma pequena homenagem às lembranças da minha infância das quais ela docemente participa. Dona Júlia já contava cinqüenta anos de idade de uma vida difícil. Era baixinha, forte, cabelos negros e encaracolados, pele índia crestada pelo sol da roça. Sua risada era tão estridente que às vezes parecia choro. Duas vezes por semana ela descia os dois quilômetros de estrada barrenta, levando sobre a cabeça a trouxa de roupas e um grosso cigarro de palha no canto da boca. Descia com uma trouxa limpa e subia com uma trouxa suja, sempre caminhando devagar com seus passinhos miúdos. Dona Júlia, ou Julita como era conhecida, lavava e passava roupas para várias famílias na vila. Das suas cinco filhas, quatro já eram moças feitas, a caçula era criança de aproximadamente dez anos apenas. As quatro moças eram cultas, prendadas e estudiosas, todas haviam cursado magistério. Uma tia, por parte de pai, que era professora, ajudava nos estudos das meninas. Quando chegavam da escola elas cuidavam dos afazeres domésticos, enquanto a mãe batia e quarava roupa na biquinha de bambu. O cheiro de roupa lavada enchia o quintal, durante a labuta dona Júlia cantarolava molhada até o pescoço. Depois de lavar toda a roupa, chegava o momento de passar. Sem as facilidades modernas das casas com luz elétrica, dona Júlia usava o velho ferro de carvão, era preciso assoprar, enquanto a fumaça castigava os olhos e a garganta. Ela passava, passava até altas horas, à luz de uma precária lamparina de querosene. Nelsinho e José eram os filhos do sexo masculino. Adolescentes, de pouca conversa sempre estavam juntos como se fossem gêmeos. Eram fortes e taciturnos, respondiam aos revezes da vida com um sorriso de lado e um olhar sorrateiro. Seu Nelson e dona Julia podem ter trilhado junto seu caminho em algum momento perdido no tempo, depois, a vida foi separando esse caminho até que se tornassem ventos soprados em direções diferentes. A casa da família era humilde e quente tudo era muito limpo e arrumado. Apesar das dificuldades e do pouco que ganhava a família de dona Julia transpirava felicidade. As moças de dona Julia eram belas e muito bem educadas. Ana era a filha mais parecida com dona Julia, de riso franco, olhos corajosos e luminosos denunciava que seria uma boa mestra para seus alunos no futuro. Ângela, com nome de Anjo era de uma força e brandura invejável, a firmeza na voz contrastava com a doçura e calma do olhar. Chamada carinhosamente de “Gilica”, diminutivo que a tornava gigantesca em ternura. As duas filhas mais velhas moravam no Rio de Janeiro. Sônia era a filha caçula, cercada de mimos feitos pela mãe que com dificuldade fazia o possível para atender suas vontades. De resto, a vida era trabalhosa e simples, ainda assim dona Júlia cantava com a sua vozinha estridente e sentida. Nunca a vi repreendendo fisicamente os filhos. Ela os educava com doçura e autoridade, tinha o conformismo inocente de quem crê no destino e segue o seu com resignação. O tempo passou, dona Júlia repousa em paz no pequeno cemitério da vila de Santa Luzia do Carangola. Os filhos encontraram seus lugares na vida, a vila cresceu e só a estradinha barrenta ainda conserva os passinhos miúdos, de quem descia devagar com a trouxa na cabeça e o grosso cigarro de palha no canto da boca. Quando volto a essa estrada ainda reconheço no canto dos pássaros as notas estridentes do canto choroso dessa grande mulher. Fim

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