A Cidade das Corujas

Eram duas horas da madrugada. O vento soprava triste. Lá fora, atrás dos muros do cemitério, uma coruja piava lugubremente. O frio e o escuro pareciam penetrar as paredes, escoar pelas frestas, passar através das venezianas das janelas e subir pelas pernas da cama.
Oswaldo fora mandado de São Paulo até aquele lugarejo para ensinar aos moradores como se precaverem contra a febre. A epidemia que se alastrara pelo país, ainda não havia chegado ali, logo, medidas preventivas eram de suma importância. O moço era recém – formado em Medicina e recebera uma ótima proposta do governo para atuar no interior. Para quem não possuía ainda uma clientela fixa a proposta era muito bem – vinda. Ele aceitara sem considerar a fundo as possíveis dificuldades, agora, tiritava de medo numa cama de pensão naquela bucólica cidadezinha. O pio da coruja lembrava o choro agonizante de uma criança ou o lamento torturante de uma mulher desesperada, isso unido ao som do vento, criava imagens sombrias e arrepiantes na mente do jovem rapaz. A noite arrastava-se, o sono se recusava a chegar, o vento não parava de assoprar lá fora, parecia forçar portas e janelas ou querer romper as frestas. O suor que lhe cobria o rosto causava uma sensação desagradável no resto do corpo, sua garganta parecia entupida de areia e seus olhos ardiam lacrimejando. Teria ele contraído a febre? Impossível, tomara todas as doses da vacina.
Depois de um longo tempo e de uma agonia interminável, Oswaldo finalmente adormeceu, teve os sonhos povoados por espectros, monstros, crianças disformes, horrendas mulheres vampiros, pedaços humanos dançantes e outros horrores. Acordou apavorado quando um inocente raio de sol pousou sobre seus olhos, então, constatou com certo alívio que já era dia. Os horrores da noite mal dormida foram aos poucos se dissipando.
O rapaz barbeou-se, tomou café e saiu para a rua, sua intenção era conhecer a pequena e pacata cidade para que desaparecesse a impressão negativa que ficara por conta dos sonhos ruins. A cidade fervilhava de vida, pessoas caminhavam alegres debaixo do sol claro e quente da manhã, eram afáveis, gente bonita, as casinhas coloridas e bem construídas, as crianças felizes e serelepes. Sob a luz do dia o cemitério não tinha nada de sombrio, era como um jardim no alto da colina no qual balançavam canteiros de brancas margaridas. Na pracinha, a Igreja Matriz era como esses antigos camafeus que se abotoavam as golas das senhoras, tão perfeitinha e bem cuidada que transpirava religiosidade. Oswaldo sentiu-se um idiota por sentir medo do vento, da coruja, e das imagens que haviam sido construídas por sua imaginação.
O dia transcorreu calmo de acordo com a lentidão típica das cidades do interior. O jovem médico visitou residências, deu conselhos, examinou pessoas, foi a Prefeitura apresentar-se ao Prefeito, que o recebeu efusivamente. Às 17 horas Oswaldo recolheu-se, tomou banho, jantou, começou a leitura de um livro e logo a seguir deitou-se. Talvez pelo cansaço do dia, dormiu imediatamente, mas lá pelas duas horas da madrugada foi acordado pelo assoprar lúgubre do vento e pelos lamentos horripilantes da coruja, o sangue congelou-se em suas veias, percebeu que fora acrescentados aos sons conhecidos um uivo medonho e o terrível farfalhar de asas. Oswaldo tentava evocar as imagens alegres daquela manhã, mas era como se estivesse preso a um monstruoso pesadelo. Temia o vento e os sons, temia o suor desagradável que o empapava por inteiro e, sobretudo, temia aquela cidade que sua imaginação fértil recriava emoldurada pelos sons.
O inferno continuou até que Oswaldo exausto adormeceu novamente.. Acordou com a algazarra dos galos e seus cocoricós. Decidiu-se, então, sair àquela noite para tirar de sua cabeça a imagem pavorosa que ali se instalara e que o atormentava intimamente, atribuía o seu pavor aos sons noturnos. Repetiu sua rotina com o firme propósito de ao terminar seus afazeres, sair em caminhada noturna pela cidadezinha em atitude de reconhecimento. Assim fez. Ao acender das luzes, pegou seu chapéu e o casaco e saiu. Os relógios marcavam 20 horas, horário de verão, fazia uma noite agradável de temperatura amena. O rapaz dirigiu-se a pracinha, estranhou ao encontrar o local deserto. Não havia ninguém ali, seus passos ecoavam no cimento do passeio público criando a impressão de que estava sendo seguido por uma horda invisível. Não quis permanecer mais tempo naquela situação desconfortável, atravessou a ruazinha estreita à procura de um bar, café, casa de tolerância onde certamente encontraria alguém. Avistou o bar da rodoviária, mas curiosamente percebeu que não havia ninguém lá, nem o balconista. Encaminhou-se para o bordel da cidade, lá sim haveria de encontrar quem quer que seja, olhou pela janela, e lá dentro, na penumbra rósea das cortinas de cambraia, uma gasta vitrola tocava um disco de Edith Piaf, porém, não havia ninguém a vista. As casas, ao contrário da manhã, pareciam vazias e decadentes, cobriam-se de uma névoa cinza, pegajosa, não havia alegria, o vigor que aparentavam durante o dia. De repente, o vento soprou mais forte, o perfume doce de dama – da – noite, misturado com o odor pútrido e repulsivo de carne em decomposição esbofeteou as narinas de Oswaldo, uma ânsia incontrolável subiu-lhe do estômago até a garganta, a custo conseguiu evitar o vômito. Uma frialdade grotesca subiu-lhe pela espinha, gotas de suor frio porejavam em sua testa, uma sensação de desamparo e solidão tomara conta do rapaz. Resolveu continuar caminhando, meio trôpego, sem o comando das próprias pernas, com o medo chicoteando sua mente, repetia para si que tudo não passava de imaginação alimentada pelas noites insones de pesadelos.
Quanto mais Oswaldo caminhava, mais crescia seu desespero e aflição. Ele pensou em chamar por alguém, mas quem? Não conhecia ninguém naquele maldito lugar, controlou seu pavor e seguiu a diante. Sem atinar dirigiu-se para a colina na qual ficava o cemitério, ouviu o pio da coruja e sentiu novamente o odor nauseante, asas farfalhavam no escuro, vaga-lumes riscavam as trevas ameaçadoras e o rapaz seguia andando às cegas.Não sabia porque sentia a necessidade de seguir naquela direção, mas mesmo assim seguia como se estivesse sob o efeito de um sortilégio maligno. Na alameda íngreme que dava acesso ao portão do campo santo, Oswaldo avistou vultos, um som estridente que se misturava aos sons já conhecidos incomodou seus ouvidos, ele parou, forçou a visão e o que viu provocou-lhe arrepios. Crianças horrendas brincavam de roda ao longo do caminho, homens com olhos brilhantes como olhos felinos farejavam o ar, mulheres desgrenhadas e demoníacas espreitavam as estrelas. O medo paralisou o jovem. Seria loucura o que estava acontecendo? Teria ele enlouquecido? A febre teria resistido às vacinas e o contaminara? Esta seria a única explicação para aquele interminável delírio. O rapaz tornara-se presa em seu próprio pesadelo, protagonista principal daquele filme de horror. Fechou os olhos com força em uma tentativa alucinada de recuperar a suposta realidade, nada acontecia, as cenas dantescas se desenrolavam a poucos metros, o riso deturpado, espécie de guincho de morcego, que as crianças soltavam atordoavam-lhe, pela primeira vez na vida o moço rezou, repetiu contrito a primeira prece que lhe veio a mente e implorou aos céus para que acordasse daquele desvario. O que conseguia ouvir era somente o vento, o farfalhar das terríveis asas pagãs, o uivo daquelas criaturas e o sibilar das fêmeas vampirescas. Ainda assim era atraído para aquele ponto, caminhava feito um zumbi. Embrenhou-se naquela cortina de insanidades, sentia dedos gelados roçando em seus braços, faces pálidas esquadrinhando sua miserável figura e aquele cheiro nauseabundo empestando o ar que ele respirava. Atravessou os portões que agora pareciam ameaçadores, sabia que seu tempo esgotava-se. Parou como se obedecesse a um comando, ouviu barulho de asas atrás de si e não teve coragem de virar-se. Por alguns instantes sentiu mais forte o odor de dama – da- noite, movido pelo desespero voltou-se. Deparou-se com algo fantástico. Uma jovem alada, belíssima, etérea, de longos cabelos negros e esvoaçantes, de unhas também negras e lábios muito vermelhos. A figura parecia ter dois metros de altura, olhos felinos e brilhantes fitavam-no com ar curioso. Uma teia de vaga-lumes bordava suas enormes asas. Ao redor daquela criatura fantástica, um tanto demoníaca e um tanto élfica, reuniam-se toda a população daquela estranha cidade, as crianças monstruosas, os homens felinos e as mulheres vampiros. No ombro direito da incrível aparição pousava solene uma gigantesca coruja branca. O rapaz diante desta cena dantesca julgou ter enlouquecido. A bela jovem aproximou-se, então, ele percebeu que os pés da moça tinham a forma semelhante aos pés de coruja. Ela farejou o moço de alto abaixo, quando sua face inumana se colocou diante do rosto do pobre rapaz ele sentiu ainda mais forte o perfume, mais forte a doçura do cheiro irreal e dos olhos que o fitavam. O medo desapareceu por completo. Um leve e agradável torpor apoderou-se dele, ele mergulhou naquela sensação e se deixou despencar naquela imensidão de trevas, a escuridão dos olhos fantasmagóricos era semelhante a escuridão pegajosa do espaço e ele sentiu-se tragado para sempre.
No dia seguinte, os galos cantaram, as ruas se encheram de gente bonita e feliz, as crianças coradas pelo sol corriam serelepes, toda a cidade fervilhava de vida. A pequena Igreja Matriz transpirava religiosidade, parecia um delicado camafeu, o cemitério parecia um jardim bem cuidado no qual se podia ouvir o canto mavioso dos pássaros e o vôo gracioso das borboletas. Tudo permanecia em seu lugar, nada destoava naquele ambiente saudável e bucólico. Um rapaz tranqüilo e bem apessoado saiu da pensão carregando no ombro direito uma enigmática coruja branca.




Dalva

Comentários

Unknown disse…
Muito bom texto. Me lembrou Stephen King.
Beijos!
Unknown disse…
adoreii professora ..
a senhora é realmente muito boa escritora,tem talento,parabéns
bejoss..
Evandro Ferreira disse…
Impressiona-me que quantas vezes eu ler esse texto mais vou me incomodar de não tê-lo escrito. Parabéns.
Também adorei o conto.

Stephen King... Hum? Não sei. O conto está mais para Edgar Allan Poe, mais introspectivo.

Escreva outro, Dalva. Estou aguardando, hein?

Já sou seu fã!!!!!

Um abração!!!
caue marques disse…
Excelente professora!
realmente adorei o texto,tanto eu,como minha mãe...
Parabéns
beijos professora
continue introduzindo vosso conhecimento em nossa mente!
Paulo Forte disse…
Gótico! Muito gótico! Lembrei de contos árabes.
Muito bem descrito, a oposição entre o o dia e a noite; a realidade e a fantasia.

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