O Discurso no período da Ditadura




Década de 70, governo Ernesto Geisel, ditadura militar, nessa época o discurso era sutil, era faca de dois gumes. Para se manifestar era preciso cuidado e todo cuidado era pouco em época de governo militar. A palavra de ordem era “silêncio”, manter o silêncio para manter a distância dos corredores da tortura, dos pavilhões do terror, dos subterrâneos da morte. Todos poderiam ser arrastados, os que sabiam e os que não sabiam também, os militares queriam culpados, precisavam de adversários subversivos para manter a suposta “ordem”, nessa época o discurso se armava de metáforas para sobreviver. Transformado em arma pelos estudantes, professores e artistas, era o discurso que martelava a consciência dos brasileiros, entoado como um mantra da não rendição à opressão daqueles anos difíceis. Por outro lado, o discurso também era a deixa para que o regime acusasse as pessoas. Se o indivíduo possuísse um discurso engajado, não se enquadrasse nas regras impostas e fizesse o devido uso da palavra, então era pego por ser subversivo e ter idéias socialistas. Esse foi o caso de pessoas como os quatro estudantes da UFMG Gildo, Idalisio, José Carlos e Walkiria. Stuart Angel, filho de Zuzu Angel. Manuel Fiel Filho, operário torturado e morto pela ditadura. Carlos Marighella,Vladimir Herzog, jornalista assassinado na prisão pelos militares e mais uma lista enorme de vitimas.
Foi nesse contexto triste e vexatório que nasceu uma pérola do discurso de resistência contra a falta de Liberdade, composta por Chico Buarque de Holanda e Rui Guerra, veio ao mundo a música intitulada Que será que será? Parte integrante do disco Meus Caros Amigos. Lançado por Chico em 1976. Sendo uma das músicas mais interessantes do disco, carrega um ar de cumplicidade e segredo, faz a mente deslizar entre os porões da possibilidade. Que palavra está subentendida nessa frase? Seria a Liberdade? Derivada da adivinha popular, o que é o que é?, a música tem uma energia indomável na composição daquilo que com certeza não tem certeza nenhuma, que em todos os sentidos não faz nenhum sentido e por ser incerta e sem sentido, também não tem nenhum juízo. Mas o regime militar não primava por inteligência, Chico conseguiu driblar a censura várias vezes, em alguma delas usava o pseudônimo de Julinho da Adelaide, os implacáveis censores ao ver o nome diferente liberavam a música pensando se tratar de outro compositor menos polêmico. Em outras vezes, Chico compunha algo ainda mais provocativo forçando a liberação de trabalhos anteriores que ao serem comparados pareciam mais leves.

A canção O que será que será? Faz brotar de dentro das coisas e das pessoas uma ânsia de espaço, de esparramar-se, misturar-se impunemente a tudo o que existe, seja prazer ou dor. É uma resposta metafórica a mordaça imposta por anos de intolerância a qualquer tipo de expressão, ao jugo da subserviência sem opções. Na primeira estrofe: O que será, que será?/ Que andam suspirando pelas alcovas/ Que andam sussurrando em versos e trovas/ Que andam combinando no breu das tocas/ Que anda nas cabeças anda nas bocas/ Que andam acendendo velas nos becos/ Que estão falando alto pelos botecos/ E gritam nos mercados que com certeza/ Está na natureza/ Será, que será?/ O que não tem certeza nem nunca terá/ O que não tem conserto nem nunca terá/ O que não tem tamanho./ o discurso sugere atitude de revolta, planeja reação e joga com a idéia de que tudo tem volta, de que nas alcovas, entre quatro paredes há um suspiro de esperança e um vislumbrar de mudanças futuras, de que planos são traçados e conversas escusas levam informações através das artes, dos pensamentos vigiados e dos encontros de botequim. Nos becos marginais e mau freqüentados é que se acenderá a luz da liberdade.
Seguindo para a segunda estrofe da música teremos: O que será, que será?/ Que vive nas idéias desses amantes/ Que cantam os poetas mais delirantes/ Que juram os profetas embriagados/ Que está na romaria dos mutilados/ Que está na fantasia dos infelizes/ Que está no dia a dia das meretrizes/ No plano dos bandidos dos desvalidos/ Em todos os sentidos./ Nesse ponto o autor brinca com a imaginação do leitor e ouvinte, o que será que cantam os poetas em delírio e que tem a mesma força do juramento dos profetas? Ou o mesmo sofrimento do dia a dia das meretrizes e que se enfatiza nas tramas dos bandidos? O que está na fantasia dos infelizes? Seria o mesmo que está nos sonhos dos amantes e desvalidos? O que não era permitido ter durante o domínio militar? Seria a Liberdade? Guardada no seio do discurso sutil e inteligente, era mostrada assim, vestida de charada.
Será, que será?/ O que não tem decência nem nunca terá/ O que não tem censura nem nunca terá/ O que não faz sentido./ A força do refrão incita, a Liberdade é desprovida de decência, é isenta de censura e por vezes não faz nenhum sentido, podemos entender dessa forma esse discurso, mas o pensamento e as interpretações são livres. Digamos que esta seja uma das várias possibilidades de leitura.
O que será, que será?/ Que todos os avisos não vão evitar/ Por que todos os risos vão desafiar/ Por que todos os sinos irão repicar/ Por que todos os hinos irão consagrar/ E todos os meninos vão desembestar/ E todos os destinos irão se encontrar/ E mesmo o Padre Eterno que nunca foi lá/ Olhando aquele inferno vai abençoar/ O que não tem governo nem nunca terá/ O que não tem vergonha nem nunca terá/ O que não tem juízo./ Os autores usaram maravilhosamente o discurso nessa música para desafiar a falta de Liberdade do regime, bradaram aos quatro ventos que não se pode evitar que um coração grite seu descontentamento, que uma garganta cale sua indignação, e de uma forma perspicaz falaram do proibido, falaram do tabu, consagraram um hino ao sentimento de pura liberdade.


Dalva

Comentários

Unknown disse…
Olhar para dentro do poeta é bem mais difícil que olhar para o mundo que ele vê. Sentir o que ele sente só é possível através dos seus olhos. E entender o que ele sente, só analisando a poesia. Ótima analise.
Mas que será agora que temos liberdade? Pergunto-me todos os dias, posto que nos esquecemos dessas feridas porque não olhamos para as cicatrizes. Que será?
Poem disse…
Temos uma liberdade vigiada meu caro...

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