O Cavaleiro da Madrugada



No início, era apenas um pequeno arraial incrustado no alto da serra em meio as grandes plantações de café. Com passar do tempo e com a chegada de camponeses provenientes das fazendas vizinhas, o lugar tornou-se um povoado em desenvolvimento. As ruas foram pavimentadas, as residências receberam luz elétrica e água encanada. O progresso continuou avançando, morosamente, como é típico nas cidadezinhas. Instalou-se o centro comercial, entende-se por comércio uma ou duas escolas, as poucas lojas, farmácias, um posto de saúde e os bares espalhados ao longo da rua principal.
Áreas um pouco além do pequeno centro foram loteadas, criou-se uma suposta periferia por onde se pode chegar ou sair da cidade, estas ruas ainda menos movimentadas, que atravessam o dia na modorra e hibernam profundamente durante a noite. Uma dessas ruas, fora no passado, linha férrea, pela qual trafegava o antigo trem de ferro extinto há muito tempo. É sobre essa rua, hoje denominada Benvindo Valadão, o relato em seguida de acontecimentos misteriosos e terríveis. Abandonemos por hora o momento presente, voltemos ao passado para que se esclareça o ocorrido.
Contam os antigos moradores, que a ferrovia atravessava as terras de um poderoso fazendeiro chamado General Francisco, homem mais temido que respeitado na região. Esse General tinha um filho que atendia pelo nome de Ângelo, que para ele era o maior tesouro na vida. Fizera tudo pelo rapaz, agira como pai extremoso e dedicado, proporcionou ao filho a melhor educação que um menino pode ter. Tentou por todos os meios enviar o rapaz para graduar-se no exterior, mas nada conseguiu já que o filho amava a terra em que nascera e preferia trabalhar no campo a estudar na Europa. O herdeiro do General era um jovem de boa aparência e rara inteligência, apesar de não ter freqüentado universidades estrangeiras possuía o verniz dos intelectuais e a força de um matuto. Era visto sempre cavalgando seu garanhão branco pelos campos da fazenda, de temperamento amável, conquistara a simpatia dos habitantes que o preferiam ao pai. Contam ainda os antigos, que naquela estrada de ferro próxima à fazenda, levantou-se uma parada de trem, pequena estação na qual as pessoas desciam ou embarcavam para vários destinos. Essa parada ficou conhecida como “Parada General” em lembrança ou homenagem ao referido fazendeiro.
Mudou-se para o lugar o Chefe da estação, sua esposa dona Isabel e sua filha Emília, como funcionário da Leopoldina ele tinha a função de supervisionar aquele trecho de linha férrea. Em uma certa tarde de julho, quando o céu derrama sobre a terra um manto azul pontilhado de estrêlas, o moço passou em sua cavalgada costumeira e parou extasiado diante da cena que se afigurava a sua frente. Uma bela e graciosa silhueta feminina, aguava distraída um florido canteiro de camomilas que exalava no quase crepúsculo, o perfume suave e delicado das florzinhas amarelas. Ela virou-se, olharam-se e o mundo deixou de existir para ambos. Depois deste dia, era comum ver o cavalo branco atado à porta da casa toda quarta-feira e domingo, até às 21:00h, horário em que se despediam os namorados. Ângelo filho do General e Emília filha do Chefe, firmaram compromisso. Passados alguns meses os preparativos do casamento entraram em andamento, como é costume na roça, a casa da noiva foi enfeitada, pintada, arcos foram erguidos para a passagem dos noivos, o terreiro foi caiado de barro branco para o baile e construíram um banco confortável para os sanfoneiros e violeiros que tocariam na festa. O casal de noivos não cabia em si de felicidade e as famílias compartilhavam desse sentimento.
Faltavam dois dias para o casório, Emília foi com a tia à cidade vizinha buscar o vestido de noiva que ficara pronto. Saíram bem cedo, no primeiro trem, o Chefe sugeriu a elas que voltassem no trem especial da tarde junto com os trabalhadores da linha, porque assim teriam mais tempo para as compras. Como ele era funcionário da Leopoldina, não fariam restrições sobre a viagem delas num trem de trabalhadores. As moças concordaram.
Emília combinara com o noivo que a esperasse em sua casa para que ela lhe contasse como tinha sido o dia atarefado. Lá pelas dezoito horas, Ângelo amarrou seu cavalo na estaca de madeira em frente à estação que levava o nome de seu pai, entrou na casa de Emília e junto com a família preparou-se para esperar por ela. Uma hora, duas horas, nada do trem passar. O pai da moça já não escondia a preocupação, a mãe rezava baixinho em frente à santa de devoção. Ângelo se preparava para mobilizar os peões da fazenda quando um ruído estridente se fez ouvir, eram três funcionários da linha com semblantes trespassados, vieram de trólei para avisar ao chefe sobre o acidente. O trem especial com os sessentas trabalhadores da Leopoldina mais a filha e a irmã do chefe havia descarrilhado, a alguns quilômetros dali, o trem rolou pelo despenhadeiro e ficou soterrado pelo barranco que caiu, ninguém sobreviveu. Os três funcionários que trouxeram a notícia aguardavam na linha para embarcar e viram o acidente. O Chefe desfaleceu sobre uma cadeira, dona Isabel correu para o quarto aos gritos, Ângelo moveu-se atônito até a porta, desceu os degraus que levava ao terreiro, montou seu cavalo e trotou pela estrada como se estivesse hipnotizado. Foi e voltou várias vezes. Percorria toda a extensão da linha e quando chegava perto da ponte que o levaria ao local da tragédia, ele virava o animal e voltava novamente, como se não conseguisse continuar o trajeto. Foi assim até a madrugada, quando já passava das quatro horas ele aumentou a velocidade do cavalo, saiu em desabalada carreira, atravessou a ponte correu, correu, o cavalo resfolegava de cansaço coberto de suor. Quando chegou a beira do precipício onde estavam enterrados os destroços do trem ele soltou as rédeas e o animal voou no abismo, dono e montaria foram se espatifando de encontro às pedras e ferragens.Conta-se que terminou ali uma trágica história de amor.
Já é hora de retornar ao presente. Ano de 2007, o referido povoado agora ostenta a patente de cidade, recebeu em batismo o belo nome de Caiana, está antenada com as modernidades e embora ainda seja cercada pelas lavouras de café já não sofre o jugo severo dos antigos Generais e nem dos Coronéis. Seus habitantes são pacatos e hospitaleiros, nessa pequena jóia serrana Anita passa suas férias. Vem de São Paulo para visitar seu irmão e a família dele que é muito querida por ela. A casa do irmão de Anita fica na rua Benvindo Valadão, na saída da cidade ou entrada, depende da perspectiva de quem chega. A mesma rua na qual existia a linha férrea que deu origem ao relato anterior. Quando em visita a família do irmão, Anita dorme no quarto de sua sobrinha e como são muito amigas, conversam bastante antes de dormir. O quarto dá de frente para a rua, a calçada fica embaixo da janela, de modo que se ouve perfeitamente o ruído de fora.
Uma noite, Anita acordou com um forte tropel de cavalo, os cascos retiniam no calçamento, o tropel vagaroso descia até a uma certa altura e retornava, o retinir das ferraduras troc.....troc......troc. Intrigada com o inconveniente barulho ela olhou o relógio e constatou que já passava da meia noite. Tapou a cabeça e tentou pegar no sono, mas o cavaleiro insistia em desfilar na rua o trote vagaroso. Pensou que talvez fosse algum peão bêbado tentando voltar para casa, mas em plena quarta-feira? O desfile continuou por mais algumas horas e aos poucos foi ficando mais distante, até que Anita conseguiu conciliar o sono. De manhã, comentou com sua cunhada sobre o cavaleiro e ela deu de ombros mudando de assunto. Ninguém ouvira. O fenômeno repetiu-se vários dias. No domingo, Anita acordou novamente às 23:00 horas com o mesmo tropel, alto e metálico, soando com eco nos paralelepípedos da rua. Acordou a sobrinha e prontificou-se a sair e chamar a atenção do sujeito. A moça não gostou muito da idéia, mas seguiu a tia porque também era curiosa. Saíram de mansinho para não acordarem os outros, abriram o portão da varanda e ficaram espiando a rua sob o céu estrelado. Ouviu-se o trotar do cavalo e era de um tom sobrenatural. As duas ficaram quietas e o que viram fez o sangue gelar nas veias. Um cavalo branco lindíssimo subia a rua trotando com graça e majestade, montado sobre ele estava um jovem de rosto pálido e triste. Ele segurava as rédeas como se segurasse a alma, da face pálida e magra rolavam duas lágrimas semelhantes a dois cristais, a luz das estrela davam um brilho a montaria e ao cavaleiro lhes conferindo uma espécie de santidade profana. Passou pela varanda onde estavam as duas mulheres, um arrepio percorreu as espinhas. Ao mesmo tempo em que aquela visão causava terror, também causava uma enorme piedade. O cavaleiro seguiu trotando e as moças o seguiram estrada a fora, quando chegou na ponte, virou-se, esporeou a montaria e desapareceu do outro lado, um vento frio assoprou a copa das árvores, uma coruja piou distante e as duas voltaram para dentro tiritando de um frio estranho que chegava até os ossos e entristecia a alma.






Dalva.

Comentários

Unknown disse…
Dalva, você está se tornando uma especialista no sobrenatural, hem? Parabéns pelo seu texto rico de detalhes que me fez sentir o frio da noite às 14h e cheiro do óleo da locomotiva na estação aqui dentro no escritório. Tenho algumas considerações mais que farei via email. Beijão

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