Dona Carmozina (Minha avó)
Hoje enquanto emendava alguns "squares" de
crochê para uma colcha, me lembrei da minha avó, ela fazia crochê
brilhantemente e foi observando ela trabalhar que aprendi alguns pontos. Não
era minha avó de sangue, mas permeia minhas lembranças de infância como se
fosse. Mulher forte e enérgica trazia o cabelo arrumado em um coque no alto da
nuca, usava vestidos rodados que marcavam a cintura e no rosto vincado
brilhavam dois olhinhos miúdos e espertos. Meu pai, adotivo, quando se referia
a ela usava a forma carinhosa "minha mãe" que eu achava de uma
ternura sem igual. Muitas vezes o vi de chapéu entre as mãos e cabeça abaixada
levando uma bronca como só os meninos levam de suas mães. Morei com minha avó
um tempo, precisava estudar e minha família vivia em um sítio, ela me tratava
como uma neta de sangue dava bronca, cobrava responsabilidade nos afazeres da
casa e vez ou outra me ensinava crochê. Nessas tardes em que me ensinava,
falava sobre quando os filhos eram pequenos, sobre meu avô e principalmente
sobre um filho que havia sumido no mundo e ninguém jamais soube o paradeiro.
Naqueles instantes os olhinhos nublavam, a voz tremia e ela logo mudava de
assunto para superar a lembrança triste. Nos meus pensamentos eu pedia ao acaso
que lhe devolvesse o filho. Meu pedido nunca foi atendido.
A casa de minha avó era um terreno tão neutro para
mim, era tão aconchegante que eu costumava dormir ouvindo o barulho do motor da
geladeira e aquele barulho dava uma sensação de segurança que até hoje quando
me sinto ansiosa tento resgatar a sensação "de lugar seguro" que
aquele lar proporcionava. O quarto dela cheirava a alfazema, perfume que as
filhas lhe davam de presente. De tempos em tempos ia assistir um culto na
Igreja Batista, sempre acompanhada por uma das filhas ou por minha mãe, nessa
ocasião se arrumava tão bem que mais parecia um desenho em um camafeu antigo e
quando passava o perfume de alfazema a seguia. A casa ficava em uma colina e
era cercada por uma calçada de cimento que a diferenciava das outras, o azul
forte da pintura ainda aciona meus sentidos sinestésicos quando vejo em outra
moradia o mesmo tom.
Minha avó e minha mãe se davam bem, não havia o ranço
natural de sogra e nora, ela abusava um pouco da solicitude de minha mãe que
exagerava um pouco na submissão, mas esse relacionamento quase que filial fazia
bem a ambas. Existia muita amizade na convivência delas, até certa
cumplicidade, em se tratando de meu pai uma tomava as dores da outra, sempre,
inexoravelmente. Lembro bem do sofá vermelho da sala, no qual ela se sentava de
tardezinha para tecer seus trabalhos. Na copa, uma cristaleira antiga, cheia de
taças e delicadas terrinas chamava minha atenção, mas não tanto quanto o enorme
pinguim de louça que ficava sobre a geladeira, o chão da copa era composto por
um piso com motivos geométricos que contrastava com o piso de tacos da sala de
visita. Não tenho nenhum retrato da minha avó, mas a lembrança daquela casa
cheia de vida, cheia de odores agradáveis e da mulherzinha forte que a saudade
de um filho conseguia nublar os olhinhos, permanece comigo, os pontos de crochê
eu jamais esquecerei...
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